domingo, 10 de julho de 2011

Todos os dias

Com os dedos entrelaçados, os dois irmãos caminhavam pela noite, admirando as luzes da cidade. Estavam alegres, embora até o ar que os cercava se espantasse com isso. De pés descalços sorriam, olhando maravilhados para a lata de sopa em suas mãos. Naquela noite, a sujeira, o frio e a solidão seriam esquecidos. Naquela noite não haveria fome.
O menino olha para sua pequena irmã e se sente satisfeito pelo olhar desejoso que encontra em seu rosto maltratado pela vida. Ela aperta sua mão e caminha mais rápido, procurando o lugar perfeito para o grande momento. Sentam-se em um beco levemente iluminado pelas luzes distantes da rua comercial. A menininha espera, e sua impaciência estampa-se em seus olhos famintos.
Com as mãos, o irmão bate com a lata na parede, tentando furá-la. O líquido cremoso escorre um pouco pela superfície do recipiente, e a menina se mexe inquieta, os olhos cravados na refeição da noite. O irmão sorri e passa a lata para ela. Com as mãos ágeis, ela a pega e a leva à boca, sem se importar com a sujeira do metal. Por um instante seus olhos se fecham e ela suga o líquido frio, se esquecendo de todas as coisas a seu redor. Não se lembrava de quando havia sido sua última refeição. Ou como era sentir a fome deixando-a. Era incrível.
A menina abre os olhos, espantada. Por um momento havia se esquecido do irmão, e estende o alimento, envergonhada. O garoto sorri carinhosamente e leva a sopa à boca. Porém, não suga o líquido.
— Irmão, como é ter uma família?
O garoto entrega a lata a ela e a olha por um segundo. Não sabe realmente o que responder.
— É cuidar, fazer sorrir todos os dias — responde o menino, tentando parecer seguro de suas palavras. Ele a observa beber o alimento e ela devolve a lata rapidamente, ainda constrangida pela demora da primeira vez. O menino a ouve sussurrar algo como “todos os dias”, maravilhada.
Ele finge beber o alimento mais uma vez e entrega para a irmã, ansiosa por mais. A criança toma um gole mais demorado e entrega a lata ao menino.
— E ter uma mamãe? Como é ter uma mamãe, irmão?
Ele toca o recipiente com a boca sem ingerir. O cheiro da sopa, mesmo fria faz o estômago doer. Porém, a sensação de ver sua irmã com fome era esmagadora. Limpa a boca como se estivesse suja e estende a lata de volta.
— É bom, imagino... — responde o menino, observando-a beber o conteúdo quase que com desespero. — É ter carinho. Mas nenhum carinho é comparado ao nosso.
A menina possui um olhar momentaneamente entristecido ao entregar a lata ao irmão mais velho. Ele se esquece da comida, da fome, do frio, do mundo. Ajoelha-se em frente a ela, olhando em seus olhos cansados.
— Você não precisa se preocupar com isso. Você tem a mim, sempre terá. Eu vou cuidar de você. Vou te fazer sorrir...
Ela se silencia por um momento, perdida em seus pensamentos. Ele leva a lata à boca e ouve a voz infantil:
— Você promete?
Ele sorri, finge que bebe a sopa e entrega a lata à irmã.
— Claro que prometo.
Ela bebe ruidosamente o fim do líquido, parecendo um pouco decepcionada com o fim repentino da refeição. O irmão a olha brincar com algumas pedras do chão e consegue ouvi-la sussurrar:
— Todos os dias...
Maravilhada.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dança da vida

Ei bailarina, do amanhã não tenha medo
nunca verá o amanhã a fazer alguém sofrer.
Não se perca em errado receio,
é o presente, o hoje, que se deve temer.

Viva hoje, bailarina! Futuros podem ser tomados.
Respire sua arte.
Pinte com seu corpo em nossas memórias
sentimentos imaculados.

Não há preço para a excelência
de tocar uma alma, preencher corações.
Com uma expressão ante às luzes do palco,
criar emoções.
Lágrimas de paz aos olhos de vidas de tribulações.

Viva hoje, bailarina! Não fuja das tentações
sem se dar o trabalho de tentá-las.
A luz do palco da vida só se apaga uma vez.
E é para sempre.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Terceira do plural

Há uma infinidade de pessoas na Terra.
E eu tenho a impressão de conhecer as melhores delas.

Eles preenchem-me quando me sinto vazio; completam-me quando todo o resto parece não fazer sentido.
Quando o céu se desfizer em pedaços sobre meus ombros, eles manterão os pedaços unidos. Farão novas todas as coisas em meu universo.
Eles tornam a tudo suportável.
Quando eu não mais puder respirar, eles serão meu sopro de vida; quando não puder enxergar, eles serão as cores do mundo.
Eles me ensinam que é necessário acreditar que um sonho é possível. Que o tempo ruim embora seja severo, ainda dura somente um tempo. E passa.
Calejam suas mãos para me levantarem de novo. E de novo, incansavelmente.
Ensinam-me a progredir e edificar-me. Tentar, sem medo de talvez errar.
Eles me fizeram entender que nada nos afasta, nem mesmo a distância ou a angústia dos anos. Não quando se é uma só carne. Um só sangue. Uma só vida.
Há uma infinidade de pessoas na Terra.
Hoje afirmo que conheço as melhores delas.
Obrigado Deus, por ter-me dado amigos.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Você

Quando fui baleado a primeira coisa em que pensei fora você.
Ele viera com sua arma e me pedira a carteira. Levantou aquele metal brilhante em direção ao meu pulsante coração amedrontado. Teve a decência de me olhar nos olhos impiedosamente antes de, com a simplicidade de um movimento de dedo, colocar uma vírgula nos meus sonhos. Era isso. Todos os planos, desejos e futuro estavam cessando em troca de algumas notas coloridas em uma carteira de couro. Quando a primeira bala perfurou-me não houve estalido, dor ou impacto. Não movi um músculo, apenas fechara os olhos. O silêncio vibrante suprimiu todo o resto e seu sorriso declarou-se, pintado em minhas memórias.
Você.
Era o universo prendendo a respiração enquanto eu, talvez uma última vez, me deliciava com a sua feição.
Abri os olhos lentamente. O metal quente ainda estava apontado para mim. Desci o olhar vagarosamente e toquei o peito com as pontas dos dedos. Eles se sujaram, rubro, vivo, envergonhados. Meu sangue se esvaía com a mesma velocidade que minhas ilusões de felicidade futura.
Lembrei do seu toque.
Olhei novamente nos olhos desumanos que me assistiam sucumbir e ele disparou novamente.
Desta vez fora cruel. O estampido fora ensurdecedor e o impacto me jogara contra a parede. Sabia que o projétil havia me rasgado por dentro e encontrava uma imensa dificuldade em respirar.
Senti falta do seu abraço.
A dor lancinante insistia em me tomar a consciência. Escorreguei pela parede de encontro ao chão, pintado-a de vermelho por onde minhas costas tocavam. Uma arte obscena. Um fruto da habitual iniqüidade humana. O homem calmamente pegara minha carteira, minha vida, e se fora. Eu não conseguia me mexer. O asfalto estava frio e parecia grudar em meu rosto. Não era uma boa maneira de se morrer. O vento sussurrava despedidas inteligíveis em meus ouvidos. Vozes desesperadas e o calor de seus donos tentavam me manter aquecido. Reconheci as mãos que acariciavam meu rosto, embora não a pudesse ver. Nem o hálito da morte poderia me confundir se tratando de você. Suas mãos tremiam e seu medo sentara-se ao nosso redor, velando por meu corpo sublinhado por terra. Desejava te olhar e, por trás das lágrimas, vi teu rosto contra o céu movendo-se de forma negativa, como se não acreditasse. O medo nos seus olhos magoara mais que as feridas na minha carne. Tive vontade de abraçá-la. De sorrir para lhe mostrar que estava tudo bem. Todavia não houve palavra. Não houve fôlego. Não houve vida. Segurou minha mão e tocou meus lábios maculados. Impotente. Assistindo ao fim, enquanto eu virava estatística. Apenas mais uma vida tirando outra. Mais um ser humano atirando no espelho.
Sentia frio, vida e sangue deixando-me. Tive vontade de trocar seu pranto por risadas, ainda que algumas poucas.
Senti saudade das palavras doces.
Estou morrendo e a única coisa em que eu consigo pensar é...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Um

Chovia e suas roupas estavam ensopadas. Os cabelos grudavam na testa e os lábios se tocavam umedecidos pela água que caía das estrelas. Abraçados de pé em uma praça, ele olhou para sua outra parte e ela sorria. Aquilo era mágico! A noite sorria com ela e por um momento ele não conseguia mais ouvir o barulho das gotas tocando o solo ou as folhas das árvores que se agitavam por todo o redor. Apertou-a contra seu corpo e ouviu não um par de corações ritmados, mas apenas um.
Era exatamente o que sentia.
Unidade.
Tocá-la era se tocar, vê-la sorrir era estar feliz, amá-la era estar vivo.
Perguntou-a se preferiria esconder-se da torrente impetuosa que provinha das nuvens e sua resposta não poderia ser mais perfeita. Ela preferia manter-se ali, ainda que fatigada, unida a ele. De tal modo a confundir-se ambos.
A torna-se um.
Sorriram, felizes com a simplicidade da vida. O desejo veemente presente era satisfeito com a mistura de algumas gotas de chuva, olhares e mãos entrelaçadas. Era a combinação para a excelência.
Olharam-se paciente e carinhosamente por uma eternidade ou mais e se beijaram.
Naquele momento, não havia altura ou profundidade, medo, dor, presente ou futuro.
Predominava a certeza de que nada os separaria.
Pois eram mais do que mil.
Eram Um.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Viver

Sou cego, tenho câncer e sei que vou morrer.
Não nasci sem a visão, como se pode presumir. Pelo contrário, eu vi o verde; vi as estrelas; vi os milagres da vida.
Fui privado de enxergar ainda jovem e, embora sem saúde, continuava sedento de vida. A ausência de um de meus sentidos mais valiosos me tornou um ser humano de ambições simples. Desejava ver o céu de novo. Cobiçava subir bem alto apenas para contemplar a beleza da luz. Almejava ver meu corpo emagrecer e perder a vida. Até mesmo assistir ao câncer comer minha saúde, pouco a pouco.
Não fui abençoado com este privilégio. Para mim, apenas dolorida escuridão.
Os cegos dias me fizeram invejar hábitos e situações cotidianas. Simples. Oh, como gostaria de me estressar ao ver o semáforo mudar de verde para o amarelo! O olhar de reprovação da minha mãe ou tão somente o sorriso debochado de alguém.
Antes era apenas ausência de luz e cor. Agora, porém, é ausência de prazo. Tenho câncer. Além da visão, perdi o irrecuperável. Tempo.
Cada manhã que abro meus olhos para as sombras da minha mente meu espírito é impedido de ser cativado pela perfeição que agrada a vista.
Porém, eu agradeço todos os dias.
Por estar vivo.
O mundo, na condição de não o poder ver, aprendi a vivê-lo.
E cada sorriso que ouço é especial.
Todas as vezes que sou aquecido pela luz do sol, sou capaz de vivê-lo, amarelo e brilhante.
Cada brisa que me toca o rosto é especial, única e última.
Com isso, perdido na escuridão da minha alma limitada, aprendi o maior dos ensinamentos, esquecido há muito por muitos.
Sabedoria de verdade é Viver.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Por favor

Papai Noel,
não quero mais a bicicleta que pedi.
Papai voltou a fumar.
Mamãe tem tomado remédios.
Eu a vejo sempre com olhos inchados.
Papai Noel, esqueça-se da boneca que havia pedido.
Faça-os parar de brigar.
Por favor.
A raiva deles magoa meus ouvidos.
Por favor, eu serei sempre uma boa criança.
Mas não deixe meu lar se tornar uma casa mal-assombrada.
Por favor.